quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ensaio - Reflexões das Minas, dos Trópicos, do Submundo



Texto: Rafael Senra

Minha leitura de férias – se é que mestrando tem férias – tem sido o livro Verdade Tropical, livro teórico-memorialista confessativo de Caetano Veloso. Optei por lê-lo nesse período por acreditar que ele, de certa forma, tangencia meu objeto de pesquisa que é o Clube da Esquina, portanto, eu poderia variar meu leque de leituras sem sentir que eu estava afastando demais das minhas responsabilidades.



Entretanto, o livro tem se revelado cada vez mais para mim como um relato extremamente lúcido e questionador de um pensador tanto inquietante quanto detalhista que é Caetano. Como eu disse acima, ele narra sua história de vida, mas de um modo que lhe é bem peculiar, e isso inclui menções minuciosas de pessoas que conviviam ao seu redor, de teorias críticas, de explanações sobre sua terra e sobre o mundo, e como se não bastasse, faz confissões chocantes.

Sua forma de escrita, tão parecida com os cacoetes intelecto-baianos de sua fala que ajudaram a celebriza-lo, nos fazem ouvir, de imediato, sua voz em nossas cabeças quando no ato da leitura. Por mais que as vezes ele beire o pedantismo, ainda assim a leitura se mantém muito atraente quase todo o tempo. Sua vivacidade e seu papel de protagonista das aventuras narradas impedem o texto de se tornar um colóquio tedioso.

As reflexões do compositor tem me fascinado a tal ponto, que percebo que nesses dias, meus pensamentos tomam e retomam temáticas similares àquelas discutidas no livro. O projeto de Caetano – e, por conseguinte, do Tropicalismo – é ainda muito atual e perene, não só pelos seus desdobramentos, pelas suas crias (sejam diretas, como a carreira solo de Rita Lee, ou indiretas, como os Titãs, para citar um único exemplo), mas pelo seu projeto de questionamento de um país sub-desenvolvido. Um episódio recente que ocorreu comigo, em particular, me ajuda a explicar uma cisão que fiz em meu íntimo sobre o projeto estético do Clube da Esquina e do Tropicalismo.

Semana passada, eu estava em Ouro Preto, pois o festival de inverno de lá tinha como tema o Clube da Esquina. Portanto, fui a trabalho, por uma simpática quase-ordem de minha orientadora, mas também para deleitar-me com o evento. Não pretendo me estender aqui sobre o evento em si, e só digo isso para contextualizar o episódio que quero contar. Basta-me dizer que fiz oficinas com integrantes do Clube, assisti shows deles, e vi exposições do Museu do CDE. Não digo isso com nenhum ranço de orgulho, como a história seguinte mostrará.

Conversando com um aluno do mestrado de filosofia da UFOP durante o evento, ele começou a me questionar sobre o projeto do Clube, que ele considerava anuente com uma série de incoerências e contradições das quais ele discordava, todas inerentes a Minas Gerais. Como eu não me considero um defensor ferrenho desse movimento, pelo contrário, tento reconhecer seus equívocos e imperfeições (e até as admiro), não censurei suas observações. Daí ele prosseguiu, falando de como a interferência da igreja e das tradições em Ouro Preto prejudicavam uma série de avanços e de projetos interessantes que a cidade poderia abrigar. Eu disse a ele que isso era uma constante nas cidades históricas ao redor, e eu me sinto mais a vontade pra falar disso sobre as cidades em que morei, Congonhas e São João Del Rei.

Discutimos muito naquela madrugada, e uma inquietação que me persegue desde então é aqui compartilhada com o leitor: Num passado talvez assim não tão distante, Minas Gerais abrigava essa religiosidade exacerbada, que tornava essa terra tanto resguardada quanto nostálgica, tanto moralista quanto acolhedora, ou seja, certo bem e certo mal aqui viviam lado a lado, sem maniqueísmos. Chamo por bem o amor pela terra, a acolhida ao “irmão”, a valorização da tradição e da memória, a discrição; e por mal, o excesso de moralismo, o poderio inquestionável de instituições religiosas e de títulos notáveis de nobreza, e a aversão ao desenvolvimento.

Reflexões Pessimistas

Olhando para Ouro Preto, a partir das reflexões do meu amigo e das que seu discurso me evocou, percebi o pior dos extremos do passado e do futuro convivendo lado a lado em Minas. Enquanto a igreja continua com uma influência e um poder nos âmbitos políticos, sociais e culturais, as pessoas, a sociedade civil, se encontra cada vez mais distante dos valores desta mesma igreja, e de quaisquer valores éticos ou morais de qualquer outra natureza. Reina o individualismo, o amor-próprio, o esquecimento do passado, da tradição.

O próprio Clube da Esquina, que já se tornou de certa forma uma tradição e um elo do passado, não é lembrado pelos próprios mineiros. Esta é uma crítica que já faço faz tempo, e em Ouro Preto percebi nuances desse fato. Vi pessoas que foram para o evento mais interessadas nas farras e nas bebedeiras típicas da cidade, do que sequer preocupadas em saber quem são os homenageados do evento. Pior, ouvi comentários de desdém, que o evento deveria priorizar as bandas “novas”, que tocam na TV, que ninguém se interessa mais por aquele tipo de som, etc. Um rapaz que conheci quando ia para o show do Beto Guedes em Mariana, não conhecia uma única música dele. Sua maior preocupação era onde conseguir um baseado.

Penso que os poderes estabelecidos no estado estão se estabelecendo cada vez mais, como a igreja ou as tradicionais famílias que usam de seu nome e influência para se infiltrar nas instâncias políticas (não citarei nomes). Por outro lado, a Minas que o Clube da Esquina canta nas letras, da acolhida e da tradição, das belas montanhas e dos coletivos... fiquei me perguntando se essa Minas ainda existe. Será que ela permanece viva, em meio aos individualismos, as descaracterizações dos monumentos, à perda da memória coletiva, e as minerações que sugam nosso verde e nossas montanhas como parasitas?

Minha prima Rosaly escreveu um livro sobre receitas caseiras típicas de Minas, que correm o risco de se perder nesse desmemorialismo que assola o estado. São receitas que sempre dependeram da tradição oral, e que ela coletou e registrou em seu livro. Quando do lançamento deste, há uns meses em Congonhas, me veio a impressão de que as pessoas não estavam tão receptivas ao livro, pelo menos à altura da importância do empreendimento ali coletado.

Para falar do livro de Caetano, acabei me voltando a uma série de reflexões que ele evocou em meu íntimo, relativas ao estado onde nasci. Não consigo evitar um tom de pessimismo em meus escritos, da mesma forma que me recuso a defender um ufanismo ingênuo sobre Minas Gerais. Acredito ser um pouco mais otimista do que o que este texto deixa transparecer, e espero escrever ensaios posteriores sobre pontos de vista mais luminosos. No entanto, este já se estendeu para além do necessário, e talvez sua mensagem seja mais eficiente como está, beirando a nostalgia e a acidez.

(30/07/2009)

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