domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ensaio - “Arranque uma cabeça e nascerão outras”!


Texto: Rafael Senra

Logo que descobri o que era pós-modernidade (melhor, quando descobri que isso existia, porquê acho que ninguém sabe dizer direito do que se trata), achei o maior barato. Aquilo explicava vários nós que eu havia carregado em minha cabeça por tanto tempo. Ainda em 05/11/2008, escrevi esse ensaio sobre o tema, onde um brainstorm intenso acabou por gerar o texto, dividido em duas partes.      
(Imagem: banner que adornava meu primeiro blog sobre cinema).
   Esse negócio de pós-modernidade é mesmo um negócio muito doido. Metaforicamente, eu poderia pensar que a pós-modernidade é como a Hidra de Lerna que Hércules enfrenta em uma de suas doze tarefas: um amontoado de cabeças escandalosas, que vão crescendo conforme são arrancadas pelo filho de Zeus. Não fosse a histórica mítica desse herói grego algo tão clássico, a comparação serviria como uma luva.
Ando pensando com meus botões o quanto a pós-modernidade é mesmo essa salada de vozes, ou como diz Stuart Hall, quanto o indivíduo pós-moderno é simultaneamente entrecortado por “várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (pág.12).  Até aí, tudo bem; o problema é quando essas identidades se põem a gritar, ou esganiçar, mais alto que as próprias cabeças da Hidra.
Tem um amigo meu, chamado Tomás (nome fictício) que encontrou uma identidade confortável vivendo como um playboy. – digo “encontrou”, porque as identidades não são fixas, mas passam por escolhas nem sempre conscientes. - Tomás vivia rodeado por esses tipos, que pegavam o carro do papai, turbinavam com o aparato pós-moderno típico dessa tribo (insufilm nos vidros, som potente, com twiters e woofers “irados”, que possa incomodar as redondezas com seu volume ensurdecedor), e saíam na rua caçando seus troféus orgânicos de masculinidade – mais precisamente, mulheres.
Tudo certo, afinal, esse tipo de tribo – e sua mentalidade embrutecida – vem se reproduzindo, como uma trepadeira comportamental. O mais engraçado é que quando chegava em casa e se refugiava no seu quarto, Tomás curiosamente não ligava o som para ouvir os “funks” cariocas que tocavam na sua banheira espacial (carro) quando ele passeava. Não, ele ia ouvir rock clássico, bandas da década de 70 e 80, coisa antiquada, bicho!
Fico pensando o quanto Tomás agia daquela forma estereotipada do típico playboy mais por aceitação social e extravasamento dos hormônios do que por vontade própria. Hoje em dia, é mesmo uma tarefa hercúlea enfrentar a Hidra das identidades fragmentadas, e tentar viver uma identidade que você escolheu por vontade própria. 
Eu passei por isso em dois momentos: um, quando eu tentei deixar meu cabelo estilo mullet (aqueles cortes de cabelo típicos dos anos 80, ou seja, datados), e outro, quando deixei um bigode de morsa (mais datado ainda), isso pra ficar só nos óbvios exemplos estéticos, e não de comportamento.
Na verdade, eu acredito que a pós-modernidade anda caminhando para manifestações cada vez mais extremas de seus potenciais. Para tentar exemplificar esse meu raciocínio aparentemente confuso, nos tópicos a seguir, comentarei exemplos de ordem cultural e política, para tentar ser mais claro sobre o que pretendo dizer.
O fogo das narinas da Hidra é cada vez mais quente
Começarei pelo exemplo cultural (que é também político, mais isso é outra história!). Dizem que o marco zero da cultura pop se deu com os Beatles. É possível pensar isso, já que os garotos de Liverpool conseguiram misturar os diferentes segmentos e gêneros de música no mesmo liquidificador, bateram tudo (beat – batida), e o que saiu foi um frankstein que até hoje assombra as culturas de massa. Na época, foram pós-modernos, sem nem saber o que isso significava. 
Já em nossos dias, quando uma banda mistura bolero com rock, música celta com eletrônica, ou maxixe com foxtrot, tá tudo certo, tudo OK, porque o que era exceção virou regra. Isso é, basicamente, um resumão doido da pós-modernidade.
Como a fila anda (outra regra do movimento), novas tendências e motivações vão surgindo. Agora, não basta você fazer um rock pesado – isso já fizeram no passado. Tem que ter o rock pesado, e mais alguma coisa. Por isso, as mamães e os papais que se escandalizam quando o Marilyn Manson queima bíblias no palco, ou quando a Amy Winehouse sofre a overdose da semana, cuidado com os pré-julgamentos caretas: isso é a pós-modernidade!
O resultado disso é que o trem está cada vez mais acelerado, e ninguém sabe por quanto tempo os trilhos podem suportar. Daí valho dos exemplos culturais, extremamente simplificados e parciais, para jogar luz sobre esse raciocínio: se uma banda hoje em dia quer ser doce, ela é muito doce (ex: Belle and Sebastian, e seus filhotes). Se uma banda quer ser melancólica, ela é muito melancólica (ex: Radiohead, e seus filhotes). Se uma banda é agitada, ela toma proporções quase histéricas (ex: todas as bandas emo). Se uma banda é engajada politicamente, ela é muito panfletária (ex: Rage Against the Machine). Se alguém quer se tornar um ídolo pop, não mede as conseqüências, e atropela quaisquer tabus comportamentais (leia-se “sexuais”) para alcançar seu intento (ex: Britney Spears).  
Em períodos da cultura pop anteriores, tipo a década de 80, ainda dava pra agüentar e até curtir artistas que se enquadrassem nessas categorias de exemplo que citei acima. Doces (Smiths), melancólicas (Cure), agitadas (AC-DC), engajadas (U2) e com um pouco de paciência, até mesmo os ídolos pop (Michael Jackson, nos bons tempos; Madonna) eram mais simpáticos. Se regressarmos até os bisavôs dos artistas atuais, a tarefa é ainda mais sossegada: doces (Beatles), melancólicas (Pink Floyd), agitadas (Rolling Stones, Led Zeppelin), engajadas (Crosby, Stills, Nash e Young), ídolos pop (Elvis, Elton John, mais para trás, tem até o Frank Sinatra!).
Peço perdão se meus exemplos ofenderem os gostos pessoais dos leitores, ou parecerem muito retrógrados, e até simplistas. Mas já me apresso em esclarecer que eles não tratam de juízos de qualidade, tanto que gosto muito de vários artistas novos. Apenas estou questionando, a título de exemplo, as motivações internas de cada um desses artistas.
Enfim, o que quero dizer é que se é para o carro continuar seguindo, o que vai ter que ser feito daqui a algumas décadas para romper com o movimento que está vigorando agora? Onde vai parar esse trem doido pós-moderno? Será que essa pinóia tem freio, ou a gente ta f***** mesmo?
Bem, se estamos mesmo vivendo essa crise cultural, eu prefiro ser otimista, porque crises são excelentes oportunidades de se repensar as coisas. A isso, vem somar a crise econômica, que se formos pensar bem, são ambas a mesma crise: da globalização, do neoliberalismo, das contradições que conviveram lado a lado na pós-modernidade por tanto tempo, como um campo minado.
Na mitologia, Hércules sai vitorioso na batalha contra a Hidra de Lerna. Se a metáfora continuar valendo, o que vai vir para nós agora? O que será nosso Javali de Erimanto, nossa próxima tarefa heróica?

Nenhum comentário: