quarta-feira, 2 de julho de 2008

Certezas Empoeiradas



Andei pensando esses dias em como coisas diferentes motivam pessoas diferentes. Como ponto de partida desse raciocínio, comparei a relação que eu tenho com a música e o cinema. Quanto a primeira (música), agrado na medida que for mais abstrata possível. Ou seja, uma música que não me faça pensar, teorizar, raciocinar sobre as coisas. Algo bem viajeira, como Pink Floyd, Camel, Beatles, algo meio aéreo, mais melódico talvez. Já na segunda (cinema), é o oposto, pois sempre tenho preferência por um cinema que instigue meu intelecto, e que me permita traçar elos, sistemas, cadeias de pensamento após pensamento. Estilo Win Wenders ou Woody Allen, só pra citar alguns.

Dando prosseguimento às minhas divagações, comparei como algumas pessoas buscam nessas expressões o completo oposto. Tem gente que escuta música pra pensar, pra pôr o pé no chão, pra teorizar as coisas da vida. Na música, curtem algo bem político e concreto, talvez como Bob Dylan, ou Caetano Veloso (pensando universos musicais bem distintos). Quanto ao cinema, buscam o espaço tremendamente irreal das franquias de ação, como os filmes de Jet Li ou Van Diesel, e suas explosões e toneladas de efeitos digitais, por exemplo. Música enquanto reflexão, e cinema enquanto celebração.

Por isso os fundamentalismos são tão perigosos. Porque as pessoas tem suas próprias dinâmicas, sua própria maneira de funcionar, de repousar, de ir e de vir. Se alguém considera que seu Deus é melhor porque é mais benevolente, ele está excluindo da sua escala de pensamento todas aquelas pessoas que necessitam de um Deus tremendamente furioso, talvez porque são pessoas apáticas demais, ou porque não vivem bem sem um empurrãozinho de alguém de cima. O oposto são as pessoas que necessitam de uma palavra suave para prosseguir, que só tomam uma atitude se tiver alguém (ou alguma coisa) encorajando amigavelmente. E ainda há os ateus, mas aí é outra história!

Eu sou vegetariano, mas se tem uma coisa que tenho horror é de tentar convencer as pessoas a aderirem à esse estilo de vida. Ser assim me agrada, pois sinto que estou defendendo uma causa, cuidando da minha saúde, ou economizando grana. Mas essa visão não condiz com o sistema de valores de outras pessoas, que não conseguem viver sem comer carne, quer seja porque cresceram assim, ou porque não tem força de vontade pra parar, ou por motivos de saúde, e o que seja. É como achar que quem sai pra uma balada todo fim de semana é um pecador, ou que quem fuma seu baseadinho pra relaxar é um inimigo da moral e dos bons costumes.

O fundamentalismo, em maior ou menor grau de radicalismo, está em mais lugares do que imaginamos, se pensarmos que todo mundo é um pouco assim pra defender algum ponto de vista qualquer. O termo é frequentemente associado ao terrorismo do oriente, mas o principal difusor desse rótulo limitado – os Estados Unidos da América – podem ser considerados os mestres incomparáveis nesse quesito. Enquanto alguns fundamentalistas islâmicos se consideram melhores que os cristãos ocidentais, mas se mantém unidos enquanto povo, os americanos não conseguem nem esta façanha. Odeiam os orientais, odeiam os europeus, odeiam seus vizinhos canadenses e mexicanos, odeiam tanto os imigrantes quanto os negros, os gays, as mulheres, e os pobres.

No Brasil, um país que vem padecendo de uma cultura cada vez menos brasileira e mais americanizada, percebe-se vários desses sintomas. Durante muito tempo, estivemos sob a égide de uma mídia quase fundamentalista, bem representada pelos ricos, branquelos e torneados atores das novelas globais. De uns tempos pra cá, contudo, está acontecendo uma grande abertura dos espaços de mídia para os oprimidos, os marginalizados, e suas expressões culturais em busca de legitimidade. Está se formando um mito da favela, do morro, do pobre, do povo negro, das camadas menos favorecidas econômica ou socialmente. Tudo isso, claro, é muito conveniente, na medida em que as minorias também podem se tornar produto de consumo, e podem igualmente consumir.

Pensei no quanto as pessoas precisam ter sua forma de catarse. Alguns preferem ir para uma galeria ou um museu, e se deleitar ao observar manchas em um quadro, enquanto chamam aquilo de “arte elevada”. Outros preferem ir para um baile funk e sacudir os quadris, enquanto cantam nomes chulos e palavrões. E ainda restam alguns que preferem coisas totalmente anticonvencionais – me veio à cabeça algo como contar estrelas, cuidar do jardim, colecionar selos, e aparentes maluquices do tipo.

O certo é que a expressão cultural que se faz efetiva, se torna um bom modo de conter os problemas sociais. Quem quiser, que me acompanhe num raciocínio rápido e rasteiro: vamos lá... uma favela fictícia. Centenas de jovens. Jovens cheios de hormônios, vitalidade, e sonhos. Jovens com potencial para se tornarem grandes atletas, escritores, chefes, trabalhadores notáveis. Mas eles não tem voz perante o mundo. Nesta favela fictícia, o jovem aspirante à atleta treina em vão, pois não há apoio. O aspirante à escritor tece seus versos em vão, pois por ali não há editoras, nem leitores. Esses jovens frustrados voltam para suas casas frias, e ao ligar a tv, dão de cara com a expressão daqueles que tem voz, que tem dinheiro, que desfilam nas festas esnobes e na ilha de “caras”. O jovem frustrado se sente excluído. Seu peito dói. O que ele pode fazer? E pior... Quais as coisas mais acessíveis nessa favela fictícia? Bolas de futebol, ou armas? Livros, ou drogas?

Do outro lado deste raciocínio anterior, a elite fundamentalista se sacode na cadeira quando vê algum representante das “minorias” nos meios estabelecidos de comunicação. Não basta os terem excluído de seus bairros, de suas festas, de suas vidas, mas também não querem sequer ouvir sua voz, ver suas faces, ou sentir sua arte. Nesse ringue, nesse embate entre classes sociais, não há campeões. Ambos perdem antes mesmo do gongo soar. Perdem uns aos outros, perdem a si mesmos, perdem suas raízes comuns, se esquecem que ambos vieram do pó, e não das promessas de cada um de seus líderes.

No fim, a sociedade parece um sujeito esquizofrênico. Uma mão quer o norte, outra quer o sul. As bandeiras individuais se sobrepõem à condição humana. No fundo, são mais orgulhosos do que felizes, e por isso abraçam com unhas e dentes seus pequenos tesouros. Seus preciosos fundamentalismos. Por aqui, meio que concluo meu raciocínio pensando um pouco sobre o quão enferrujados estão nossos universos particulares e nossas conclusões limitadas. E pretendo me sentar um dia para ouvir um disco dos tropicalistas com calma, ou pra assistir um filme bem barulhento e computadorizado. Ou seja, espero tirar um dia para sacudir a poeira das minhas certezas.

01/05/2008

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