sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Resenha de Filme - O Cheiro do Ralo (de Hector Dhalia, 2007)


De lançamento pouco divulgado, a obra se tornou cult, e foi um dos filmes nacionais mais assistidos de 2007.




Se, por um motivo qualquer, se abrissem as comportas dos porões de nossa mente, e todos pudessem sentir através do olfato o quão podres nós somos, o quanto nós somos toscos, dominadores, esquizofrênicos... enfim, como será que nós reagiríamos? O que nós próprios achamos do odor das nossas repressões internas?

Para além do entretenimento, um bom exercício para isso é assistir “O Cheiro do Ralo”, de Hector Dhalia, com Selton Mello. Um grande filme nacional dessa nova safra de produções mais refinadas do ponto de vista técnico, e que se aproxima muito de um cinema-arte, com o visual suburbano, as referências pop e personagens bizarros fazendo fundo para um protagonista, a princípio estranho, nos mostrar um lado negro da psique humana. Tal façanha pode ser comprovada estatisticamente, pelo fato do filme ter passado longe das grandes salas de cinema e sido pouco divulgado, e mesmo assim se tornar um dos lançamentos brasileiros mais assistidos do ano.

O filme é baseado na revista em quadrinhos de Lourenço Mutarelli, autor conhecido dos leitores de quadrinhos adultos e underground já há vários anos. A adaptação para o cinema se mostrou eficiente, e vem comprovar como os quadrinhos podem fornecer a nona arte um leque narrativo tão profundo e rico quanto qualquer obra literária.

Selton Mello interpreta Lourenço (esclarecendo, para não confundir: O protagonista da obra tem o mesmo nome do criador), o dono de um antiquário. O ator acerta na interpretação contida, que torna o personagem mais tridimensional, com toda sua racionalidade e aversão a excessos e dramas como o que a sua ex-namorada protagoniza. Mutarelli também faz uma ponta ao interpretar o segurança do estabelecimento de Lourenço (o personagem). Ele não faz feio nos momentos em que aparece, além do que isso proporciona ao espectador vislumbrar uma ponte entre criador e criatura, ainda que somente no plano estético.

A catarse de Mutarelli acontece através do seu personagem homônimo, um sujeito dominador e fascinado pelo poder que exerce sobre os outros, ao bradar sua bandeira de auto-suficiência. Todas as peças de seu antiquário não significam nada para ele; servem apenas como um pretexto para que diversas pessoas o procurem, na esperança de vender seus bens pelos mais variados motivos.

Ao longo da obra, o personagem vai perdendo sua humanidade, e talvez o ponto de partida desse processo seja quando dispensa sua noiva sem a mínima consideração. Percebe-se que a presença da realidade externa começa a incomodá-lo, e seu desejo é construir ao seu redor um império imaginário onde ele possa exercer pleno controle.

A faceta dominadora surge para o espectador no momento em que ele troca a presença feminina real em sua vida pelo desejo de possuir a bunda de uma atendente de lanchonete. Ele não tem a mínima consideração pela mulher, a ponto de ignorar seu nome, e como se vê posteriormente, até seu rosto. Só o que o chama a atenção é a bunda, e esse fato já abriria uma brecha para psicanalistas citarem aí uma carência da fase anal, ou até discursar sobre delírios de dominação.

O filme foi concebido com vários toques sutis que vão dizendo muito sobre a síndrome de grandeza de Lourenço (o personagem). Como quando um cliente tenta vender a ele um autografo do ator americano Steve McQueen, e Lourenço recusa tanto por não ir com a cara do sujeito quanto por desconhecer sobre cinema. Logo atrás dos dois, um cartaz do filme “Getaway”, de McQueen, adorna a parede. Ou seja, há um rompimento com a idéia de um dono de antiquário nerd, que conhece a fundo todas as obras que vende. O insensível protagonista prefere inventar os fatos ao seu bel-prazer, catalogando restos da realidade e remontando seu mundo bizarro.

O prazer que ele parece sentir ao se portar de forma tão bizarra fica ainda mais evidente quando ele compra um olho humano de um cliente, por um preço muito mais alto do que grandes ofertas que ele recusou. Ele inventa todo um passado a respeito do pai, que parece ser a sua grande carência não declarada. O dono do olho, a partir daí, fica sendo o pai, e nessa narrativa, fica claro o desejo de reconstruir o pai através de peças que ele compra, como uma perna mecânica, e o olho, o moldando na sua realidade alternativa, como se fosse “um frankstein”, ele diz.

No início, Lourenço tenta convencer a todos que o cheiro do ralo do banheiro ao fundo não é dele. Mas à medida que o personagem se identifica com sua porção bruta e tosca, ele começa a admirar e apreciar o cheiro. Por fim, observamos o momento em que ele abre mão de sua humanidade, e sela definitivamente seu próprio destino. O ralo aí funciona como uma genial metáfora para seu declínio moral: No início, cheio de pudores, nega seu lado negro, para depois se identificar com ele ao ponto de se fundir por completo. O preço disso é o rompimento com o seu já restrito círculo social, composto talvez pela mãe e pela noiva apenas.

Uma obra que não deve nada para nenhuma obra literária, repleta de nuances e camadas profundas, e que mostra como o fascínio por um mundo idealizado pode tomar conta de um indivíduo ao ponto de torná-lo um pequeno tirano, que acredita que o amor é mercadoria e que todos têm seu preço (de preferência baixo).


Um comentário:

maria roc disse...

Gostei muito de sua análise deste excelente filme.