quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Resenha de Filme: Cidade dos Sonhos (David Lynch)






Prólogo - Filmes que cobram do espectador

Tem dias que a gente resolve ser camarada com os nossos cérebros, e se senta na frente da TV com o objetivo de assistir as coisas mais idiotas que pudermos, sem o menor pudor de botar de lado aquele filtrozinho que normalmente apita a cada programa superficial e tosco. Nesses momentos, nossos neurônios vão se sentir extasiados com qualquer filme do Van-Damme ou do Schwarzenegger, e nossa massa encefálica liberará a mesma quantidade de endorfinas que normalmente teríamos acesso ao assistir cineastas de estilo mais refinado. Resumindo: Assistir filmes cabeça o tempo todo é um saco!


Entretanto, depois de ver o atual governador da Califórnia por algumas vezes, o cinéfilo de carteirinha logo vai sentir sua consciência cobrando “poxa, que raio de espectador é você? Não tem aí na sua escrivaninha nada do Bergman, ou Fellini, caramba?”. E o instinto logo vai querer jogá-lo de novo em uma área de risco, onde nada é previsível e toda atenção é recompensada.


Essa semana, passou na globo um filme do Ridley Scott, chamado “Chuva Negra”, com Michael Douglas e Andy Garcia. Um filme policial acima da média, que somente não vi até o final por causa do sono. Enfim, logo que acordei no dia seguinte, pensei que deveria ver algo mais desafiador, que me fizesse ter ligações neuronais imprevisíveis, mas nada havia me preparado para esse “Mulholland Drive”, ou “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch.


Onírico e Crítico


O filme permite uma série de interpretações por parte do espectador. É como se Lynch não o tivesse acabado, e intencionalmente ele permite que, com isso, se abra uma margem para o espectador concluir (ou interagir) a partir de sua própria imaginação. E vale lembrar que nem o próprio diretor arriscou definir o filme em sua totalidade. Só para começar, toda a idéia de uma estrutura narrativa básica, com princípio, meio e fim, não existe nesse filme. E nem construção de caráter de personagens; uma pessoa feliz aparece amargurada em outro trecho, e vice versa, etc.


Lendo uma resenha assim, pode-se concluir que esse filme é tão somente um arroubo pós moderno, uma excentricidade de um diretor tido como genial, testando seus espectadores com um espetáculo bizarro. Mas a coisa vai bem mais além, acreditem. A lógica do filme na verdade pode ser comparada com um sonho, e vale assinalar que nossos sonhos tem suas lógicas aleatórias, o legado de Freud e Jung está aí para nos lembrar disso. De qualquer forma, o filme consegue prender a atenção, principalmente pelo clima misterioso perene em cada cena. É um filme de quase duas horas e meia, entretanto nem se nota, pois Lynch sabiamente joga inúmeros ganchos que fazem as engrenagens da nossa mente girar sem parar.


Se a película parece um sonho, porém, não se sabe ao certo quem está sonhando. Um palpite que eu tive é que na segunda parte do filme, a protagonista (que no início é a personagem Rita) personifica a personagem Betty em seu delírio. Uma coisa parecida com o filme “Persona”, do Bergman, onde duas mulheres dividem uma intimidade tamanha que parece fundi-las, e elas perdem a noção de quem é quem. Inclusive, uma pequena cena de “Cidade...” parece sugerir esse elo, que é quando Betty coloca a peruca loira em Rita, e elas ficam se admirando no espelho, perdidas no devaneio da semelhança mútua.


De acordo com Lynch, qualquer interpretação pode ser tomada como correta, porque a intenção dele parece ser não invalidar nenhuma conclusão; no entanto nenhuma delas também é tomada como absoluta (o dilema da “obra aberta”). A enorme quantidade de detalhes, quando amarrados no final, serve para comprovar que apesar da não-linearidade, tudo ali serve a um propósito. E há também a questão das dualidades, que já começam na fusão das duas belas personagens loira e morena, e na Los Angeles mostrada tanto encantadora quanto obscura. Sonho e pesadelo se confundem, da mesma forma que é impossível dizer se o filme se trata de um drama, romance ou até suspense.


Quanto aos detalhes, além da beleza e qualidade de atuação das protagonistas, há também a trilha sonora de Angelo Badalamanti, sempre competente como em outros filmes de Lynch. Dos inúmeros detalhes, esses são os que mais me chamaram a atenção. Isso sem contar uma cena de amor muitíssimo instigante, marcada por uma atuação estupenda dos envolvidos (não darei mais detalhes para não estragar o elemento surpresa!).


Apesar do verniz intrincado, o filme carrega em si uma essência de crítica a tudo que Hollywood representa. Há farpas tanto para os jovens idealistas que sonham com o glamour e o prestígio de estar entre as estrelas do cinema, quanto para os profissionais que abrem mão do brilho e da qualidade de suas obras em detrimento do interesse dos produtores. As grandes obras do cinema, como o filme “Gilda”, de Rita Hayworth e Glenn Ford, ou a citada “Persona”, aparecem como pano de fundo, como ecos de um universo que teve seu passado glorioso, e que agora confunde qualidade com estatísticas e cifrões.


Por trás da aparente loucura de um sonho desconexo, David Lynch mostra o domínio de sua arte como uma faca de dois gumes, atacando e se ferindo ao mesmo tempo suas qualidades e idiossincrasias. O alvo, e o leitmotiv, são o mesmo: O cinema.

Nome: Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, EUA, 2001)
Direção: David Lynch
Elenco:
Naomi Watts, Laura Elena Harring, Justin Theroux, Ann Miller, Mark Pellegrino, Robert Foster, Dan Hedaya, Katharine Towne, Lee Grant, James Karen e Vincent Castellanos.

Extra: Dez dicas para se entender "Mulholland Drive"

por David Lynch: Extraído de http://www.screamyell.com.br/cinema/cidadedossonhos.html
Em um texto especial para o jornal inglês The Guardian, o diretor David Lynch, também autor do roteiro, elaborou dez pistas sobre Cidade dos Sonhos. Anote num papel, decore direitinho e divirta-se.

1) No começo do filme, antes dos créditos, duas pistas são reveladas.

2) Fique atento para o que está escrito no luminoso vermelho.

3) Qual o título do filme, para qual o personagem Adam Kesher está realizando teste de elenco? Ele será mencionado mais uma vez durante CIDADE DOS SONHOS?

4) O acidente é um importante acontecimento em CIDADE DOS SONHOS. Onde ele acontece?

5) Quem entrega a chave azul e porque?

6) Fique atento para o roupão, o cinzeiro e a caneca de café.

7) Qual mistério é revelado no palco do "Club Silencio"?

8) Somente o talento de Camilla pode ajudá-la?

9) Fique atento para o objeto que está nas mãos do estranho homem que vive perto da lanchonete "Winkie"!

10) Onde está tia Ruth?

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